Linha Editorial
Este livro que tem em mãos, o Arte | Ética | Crítica | Escritura: Que nenhuma voz da realidade humana seja empurrada para baixo do silêncio da história - Tomo I, é resultado de um projeto editorial mais amplo, que visa a publicização de possibilidades de se exercitar criticamente o pensar-escrever de fenômenos artístico-culturais brasileiros contemporâneos. Enquanto tal, e como o próprio título insinua, esta é apenas a primeira publicação de uma série por vir, derivada de desdobramentos futuros do Projeto AECE.
No âmbito deste Tomo I, buscamos colocar uma espécie de lente de aumento sobre uma problemática específica: ‘que nenhuma voz da realidade humana seja empurrada para baixo do silêncio da história’; uma pequena, mas relevante variação ao chamado de Sony Labou-Tansi: que nenhum rosto da realidade humana seja empurrado para baixo do silêncio da história [1].
Assim, a linha editorial desta publicação foi pensada de maneira a reunir vozes que ou permanecem não encontrando eco em compêndios, antologias e coletâneas de história da arte e da cultura brasileira contemporânea, ou, quando neles incluídas, figuram na maior parte dos casos como espécies de commodities [2], à serviço da agenda neoliberal e neo-colonial de cooptação da diferença para fins de manutenção das relações de saber/poder, desde posições historicamente privilegiadas.
Em outras palavras, trata-se do enfrentamento de quatro pontos extremamente problemáticos, que perpassam as linhas editoriais de muitos desses compêndios, antologias e coletâneas – mesmo aqueles que, nesse momento de atualidade, se dizem implicados ao leitmotiv decolonial. Sendo eles: 1º) a conservação do pacto narcísico da branquitude e da cisheteronormatividade na ingerência dos debates em arte e cultura; 2º) a propagação de estratégias falaciosas de representatividade e de coexistência apaziguada de diferenças nesses campos; 3º) a explícita escassez de pluralidade na composição do corpus de autories – cuja reiterada presença de nomes considerados porta-vozes “oficiais” dos debates que orbitam o circuito artístico-cultural contemporâneo brasileiro (inclusive por vias ditas contra-hegemônicas) caminha na contramão de uma contestação efetiva da autoridade do dizer, por interposição da redistribuição dos protagonismos e das visibilidades nesse circuito; 4º) o flagrante desinteresse na descentralização do conhecimento em arte e cultura, enredado geopoliticamente em grandes metrópoles, notadamente no eixo Rio-São Paulo.
Tal enfrentamento se faz notório à medida que a linha editorial deste primeiro tomo visa a celebração de vozes que, a despeito das especificidades dos seus enfoques prático-discursivos e das singularidades do loci geopolíticos e corpos-políticos de enunciação [3], têm buscado aliar recusa à totalidade das histórias e das narrativas de mão única da arte e da cultura, com possibilidades de desmontagem e de reelaboração de sentidos das próprias formas de narração da historicidade da arte, da cultura, de si e do mundo.
Sim! Pessoas LGBTQIAP+, negres, indígenas – desde as mais distintas centralidades constitutivas dessa territorialidade plural e díspar que é o Brasil – são capazes de intelectualidade [4], mesmo quando os espaços acadêmicos e do circuito da arte contemporânea tornam difíceis nossas permanências ou nossa chegada aos mesmos.
Nesse sentido, enquanto corpa/o dissidente, assumir lugares de organizadories e editories desta publicação foi a forma que encontramos não só para, através dos gestos que tornam nossas vidas possíveis, nos posicionar ante a falcatrua universalizante de livros de história da arte (europeus, gringos ou mesmo alguns brasileiros), que não nos abraçam e não sabem o significado da palavra “diferença”. Mas também para, desde o lugar de escuta, entender que é necessário que se abram caminhos para nossas/os corpas/os, de maneira que possamos nos infiltrar nesses espaços e escolher ficar ou sair deles; que tomemos em nossas mãos o direito de escolha, e que a precariedade relegada às/aos nossas/os corpas/os e trabalhos – e o descrédito ostensivamente conferido às nossas intelectualidades – não nos forcem a saída.
Não operamos, aqui, por vias utópicas ou sem falhas. Buscamos afirmar, nas mais distintas instâncias que perfazem a produção deste livro, o máximo de diferenças como potência de continuidade junto à impossibilidade da tarefa que nos colocamos a fazer, diante da superficialidade do regime representacional de outridade [5] e de suas violências decorrentes. Gesto ético-político que efetivamente favorece a instauração de uma rede polifônica de repertórios poético-narrativos, domínios de linguagens e modos de apreensão e figuração do real [6], que nos permitisse enxergar outros horizontes além de um sistema da arte mal acostumado com estrelismos e discursos assombrosos sobre representatividade que cooptam (nossas) narrativas enquanto corpos dissidentes.
Horizontes que convocam a diferentes maneiras de escrever, de fazer arte, de fazer curadoria, de educar e de historicizar, e que juntos se complexificam, trazendo consigo alguns pontos cruciais para começarmos a repensar nossas inserções e permanências nestes campos: nossas/os corpas/os que importam; há diferenças na diferença; e nos recusamos a sermos objetificadas/es/os em vitrines de diversidade
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Quinze (15) interlocutories aceitaram nosso convite para colaborar com a materialização deste primeiro tomo. Um corpus múltiplo, imbuído de nomes, em plena atividade, e que além de agenciarem a distensão de novos espaços-tempos de conhecimento em arte e cultura brasileira contemporânea, vêm afirmando e fomentando, por meio de seus gestos e modos de agenciar suas redes, o incentivo real à elaboração de experimentos de pensamentos críticos a partir de outras forças epistêmicas, políticas e afetivas.
Esta publicação é, assim, estruturada em duas seções. A primeira, denominada Diagramas, é composta por dezessete registros gráfico-imagéticos. Uma seção derivada do convite para que cada interlocutorie acessasse seus territórios de existência, com vistas à produção de mapas mentais e sínteses sinópticas, junto aos conjuntos heterogêneos de referências, problemas, questões, ideias, insights que, até aquele momento, teriam se manifestado como bússolas éticas de suas agências de pesquisa. Aposta na emergência de modos singulares de partilha do pensamento em estado implexo [7], que excedesse o domínio da grafia da palavra escrita sem dela se despojar totalmente. Gesto que permitisse ascender aos bastidores das discussões e reflexões travadas no ensaio, a partir de um outro registro de relato dos argumentos nele mobilizado, e cuja ênfase estaria nas maneiras como graficamente suas referências prévias se relacionariam umas com as outras [8].
Já a segunda seção, denominada Ensaios, é composta por quinze textos, derivados do chamamento à elaboração e/ou à reelaboração de um ensaio crítico autoral. O convite consistia para que cada interlocutorie estabelecesse um recorte analítico à sua escolha, a partir do qual fosse possível: 1. Refletir sobre como as questões problematizadas nos âmbitos de suas investigações e produções recentes têm lhes atravessado (e vice-versa); 2. Explorar como cada ume estaria maquinando escrituras [9] consoantes junto às investigações e produções recentes, tanto a alteridade de suas formas dissensuais de expressão, ativação, recepção e conhecimento em arte e em cultura, quanto a complexidade da crítica delas derivada – seja em sua radicalidade, seja em sua liberdade de manifestação.
Como editories, pensar e operar a organização de ambas as seções foi, para nós, similar àquilo que Alberto Manguel escreve a respeito da biblioteca à noite [10]: uma geografia que contradiz o tempo e que também diz respeito a ele, mas que não pensa em ordem e harmonia, e sim em vizinhanças e contradições. Assim, propomos que os ensaios e diagramas fossem reunidos de modo a aproximar, não estritamente, as formas, temas e gestos; mas que as imagens pudessem se coletivizar como um corpo-trama, criando novas possibilidades éticas nas escritas ao conjugá-las junto às suas boas vizinhanças.
Assim, objetiva-se que o saldo final deste primeiro tomo caminhe para muito além de uma mera compilação de ensaios escritos e visuais avulsos des autories nele reunides. Espera-se que, juntos, esses ensaios complementem-se em um vasto panorama ao redor de desobediências estético-epistêmicas, comprometidas com as justiças cognitivas/sociais e com a vida em sua pluralidade e imanência. Vislumbra-se, portanto, este conjunto de ensaios como um experimento cartográfico, analítico-prospectivo, nebuloso e heterogêneo, indicativo de pensamentos em devir que encorajam ao desenvolvimento de decomposições e reconstruções de sentidos para a arte, a cultura e o vivido.
Por fim, aproveitamos para agradecer publicamente es autories desta publicação e a equipe de produção do Projeto AECE (Amanda Amaral, Ana Carolina Duarte, Cláudia Vieira, Maurílio Mendonça, Mel Travassos, Victor Gadiola e Gelso Vieira), sem es quais essas realizações não seriam possíveis. Bem como manifestar o nosso agradecimento à Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo, cujos recursos concedidos, via FUNCULTURA, nos permitiram dar materialidade ao que antes eram apenas desejos e intenções. Destarte você pode seguir, daqui para a frente, para bons encontros [11] com Afonso Medeiros, Augusto Leal, Brune Ribeiro, Coletivo FURTACOR, Geovanni Lima, Guilherme Marcondes, Ian Habib, Jocy Meneses, Juliano Bentes, Luciara Ribeiro, Mara Pereira, Naine Terena, Napê Rocha, Tatiana Rosa e viníciux da silva.
Lindomberto Ferreira Alves & Phoebe Coiote Degobi
Organizadories
[1] TANSI, Sony Labou. Les sept solitudes de Lorsa Lopez. Paris: Le Seuil, 2014 [1985].
[2] MOMBAÇA, Jota. A plantação cognitiva. In: MESQUITA, André; LEWIS Mark (Orgs.). Arte e descolonização – Masp AfterAll. São Paulo: Masp/ Afterall Research Center, 2020. p. 1-12
[3] BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramón. Decolonialidade e perspectiva negra. In: Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 15-24, jan.-abr. 2016.
[4] Fazendo coro e ampliando as palavras ditas pela pesquisadora Carla Akotirene: “Não esperam da preta retinta a intelectualidade”. Esta fala foi retirada de uma entrevista ao Notícias UOL, em 2021. Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/colunas/andre-santana/2021/03/21/a-trajetoria-de-carla-akotirene-revela-os-desafios-da-intelectual-negra.htm>.
[5] 7 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.
[6] 8 MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia (Orgs.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Departamento de Letras Românicas, Faculdade de Letras/UFMG, 2002. p. 69-91.
[7] LAPOUJADE, David. As existências mínimas. Trad. Hortencia Santos Lencastre. São Paulo: n-1 edições, 2017.
[8] Uma primeira aposta neste modo singular de partilha de pensamentos foi experimentada no âmbito da produção do material educativo do “Projeto Divisa | Instalação Online da artista Rubiane Maia” (2022). Para maiores informações, ver: ALVES, Lindomberto Ferreira & MAIA, Rubiane. (Orgs.). DIVISA: Notas em Rotas de Travessias [Ebook]. Vitória: SECULT/ ES, 2022. Disponível em: <https://www.projetodivisa.com/material-educativo>.
[9] BARTHES, Roland. Escritores e escreventes. In: BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2013. p. 31-39.
[10] MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite. Trad. Rita Almeida Simões. Lisboa: Edições tinta da china, 2016.
[11] SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.